Meu cabelo e eu: uma relação de amor, cumplicidade e afirmação

Vêm de muito longe as minhas primeiras lembranças envolvendo experiências com o cabelo! Por volta dos anos 1960, às margens da BR 324, numa casa avarandada, lá pelas 10h da manhã ou quem sabe as 15h, bem no meio da tarde. Hora de pentear o cabelo. Todo dia. Não faltava.

Era uma labuta… um arranca rabo! Verdadeiro bafafá: minha mãe tentando pentear o cabelo da minha irmã mais nova, Vera! Gritos, choro, indignação… minha mãe sentada, Vera presa entre as suas pernas a gritar e gesticular. Com as mãos postas, como em prece, não parava de dizer:

– Eu quero é assim!!!!

– Não vai ser assim nada, vou pentear do jeito que pode!

– Eu quero solto!!! Berrava minha irmã!

– Não vou deixar você com o cabelo em pé! De jeito nenhum! Ofegava minha mãe!

E por aí seguia por horas a peleja das duas… não raro os gritos da minha irmã eram tamanhos que a minha avó, que morava a uma certa distância de nossa casa, chegava para acudir e apaziguar:

– O que é isso minha gente?

– Não já sabe? Verinha sem querer pentear o cabelo!

– Bela, porque não penteia do jeito que ela quer?

– Vera, minha filha, deixa sua mãe pentear seu cabelo…

Com parcimônia e sabedoria, minha avó tentava interceder na situação. Eu que já tinha passado pela etapa do penteado ou que em algumas vezes seria a próxima. A tudo assistia, e reflexiva me perguntava: Por que  minha irmã complicava assim, mesmo sofrendo tanto com a situação?

Pensava dessa forma porque a minha experiência com o penteado parecia ser substancialmente diferente. Minha mãe chamava, soltava minhas tranças , desembaraçava, colocava uns oleozinhos bem cheirosos, penteava delicadamente, e no final ainda tinha direito a retoque e arremate! Uma arrumadinha pelos lados … se fosse dia de festa ou de sair pra qualquer lugar: um belo laço de fita! Umas gotinhas de alfazema aqui e ali… E o resultado era a perfeição! Eu ficava linda! Uma fofura. Assim, toda coquete.

E o tempo passou… vim estudar na cidade grande. Quando dei por mim, lá estava eu: uma vez por semana hora certa para alinhamento. No pacote, ferro tipo chapinha ou pente, ferro de cachear, cadeira de tortura, fogão, misses  … risco de queimadura…cheiro de cabelo queimado…uma parafernália. De quebra, lavar a cabeça todo dia, nem pensar. Ritual do bob antes de dormir… Nero… torço.. fazia parte dos requisitos para a minha apresentação, já que passei a integrar uma família da alta sociedade de bairro popular.

Minha benfeitora, com especializaçãp em requisitos necessários para se portar adequadamente como pessoa da sociedade, e cujos conhecimentos tinham como referendum o seu exercício profissional  em casas de familia,  não poupava esforços para adequar a menina do interior às modas da civilização . Nisso se incluíam: cabelos alinhados e esvoaçantes, franjas, cachos, sapato de salto, saia engomada,  forma de sentar, de deitar, de olhar e sorrir…sem deixar de passar pela mudança estrutural dos modos, do vocabulário e entonação da voz.

Dentro de mim, a insatisfação era constante! Ciente da importância da aceitação dos fatos para o êxito da minha trajetória, mesmo indignada visceralmente com o adestramento que me via submetida, não esboçava um murmúrio sequer que denunciasse o meu incômodo. Aos 15 anos, já era claro pra mim, onde estava, onde queria chegar e a trajetória que precisava seguir. E no horizonte sonhado, não havia lugar para  ferro quente e alisamento, formalidades,  manuais de etiqueta, conveniências sociais. Solitária e reflexiva, traçava planos e estratégias. Decerto, tinha o firme objetivo, de crescimento pessoal, independência financeira e o exercício de liberdade pessoal. Nesse sentido, a convicção do direito fundamental da mulher como ser independente me norteava, o que por vezes me custou inúmeras e importantes críticas em função dos valores da época por muitas mulheres mais velhas.

Transpostas as barreiras criadas com a finalidade de  impedir o acesso das pessoas negras à universidade, ouvi na rádio o meu nome na lista dos aprovados no vestibular para o curso de medicina.

Aí pensei: É agora!!! Juntei uns trocados economizados a muito custo para uma hora de necessidade e me fui… primeiro de ônibus, depois com elevador.  Na época, então moradora do subúrbio, tinha roteiro limitado, Calçada, Terminal da França, Praça da Sé… : empoderada, adentrei o primeiro salão, àquela hora aberto. Me abanquei na única cadeira existente, que para minha sorte se encontrava disponível… No ímpeto da chegada, acho que nem boa tarde, eu dei! As meninas que já me olhavam intrigadas, não conseguiram disfarçar a perplexidade diante da minha solicitação: -Quero cortar o cabelo.

Ao tempo em que me paramentavam para a operação, se entreolhavam. Com voz mansa, e na sua melhor performance de atendimento ao cliente, tentavam entender  o que de fato eu desejava fazer, se era mudar o corte, retocar o pé,  tirar as pontas… Talvez duvidando da minha sanidade mental, já que parecia incompreensível, diante do esforço de muitas em manter um cabelo como preconizado pela revista Capricho, eu ali estava para uma crueldade, como elas, mais tarde, assim passaram a definir o meu projeto.  Objetiva, expliquei que desejava cortar o cabelo! E todo. E bem curto, no modelo “Joãozinho”.

Instalou-se o caos.  Pausas… aquiescência… alguém com iniciativa, foi chamar uma pessoa que estava lá pra dentro, na parte de trás. Uma consultoria? Me pareceu. Alguém com a expertise suficiente e que pudesse entender e autorizar a ordem de serviço, liberando o meu pedido. Ainda assim,  aconselharam, colocaram espelho de frente, de costa e de perfil. Elogiaram o estado do cabelo, com relação ao tamanho, apresentação e coisa e tal! E nada! Vendo que eu não ia arredar o pé. Por fim, iniciaram o flagelo. Não sem antes me fazerem prometer de pés juntos que não retornaria acompanhada da família a chorar de arrependimento. Finalizada a tarefa, foi com visível consternação que receberam o pagamento e eu ali a me olhar no espelho. Minha imagem refletida a perscrutar interiores, redenção, reencontro,  retomada, intimidade e identidade.

Triunfante desfilei de volta pra casa, experimentando uma deliciosa sensação de liberdade e sintonia. De vez em quando afagava discretamente a cabeça, e sentia sob os dedos um quê de ternura e prazer ao perceber, ao toque, a minha raiz a prenunciar o crescimento, e a restituição da liberdade e autenticidade. Por dentro, uma sensação de força e bem estar me inundava! Me sentia como se, de repente, tirasse de mim um véu que me desconectava e, dessa forma, pudesse me deixar ser vista pelas pessoas como eu realmente era. Sem nada por trás, nenhum falsete, nenhuma amarra pra me limitar na plenitude. Finalmente poderia ser eu. Sem insegurança e sem ressalvas. Cabelo livre, bom, macio, cheiroso, crespo. Cara minha, linda a toda a hora! Cabeça lavada na hora que quisesse! Sem medo de chuva, de ferro quente! Adeus bobs, nero, grampos, torço. E lá estava eu, pronta para enfrentar a vida e o ambiente inusitado da Escola Baiana de Medicina. Me sentia forte e pronta pra enfrentar o mundo.

Não é à toa que, para falar da minha relação com o cabelo, lancei mão desses dois fatos marcantes da minha memória. No primeiro, chamo a atenção para a vivência do ato de pentear e de cuidar e de toda a trama afetiva envolvida, que além de evocar a minha singularidade no tocante à forma de lidar com as diversas situações do cotidiano, também remeteu a sutilezas sensoriais experimentadas na minha relação com o cabelo, que permanecem presentes e acessíveis ao meu toque, plenas de prazer significados e afetos. E, em seguida, ao abordar a decisão de cortar o cabelo, como um ato emancipatório e fundamental para o resgate da minha autoestima, evidencio a importância dessa atitude como forma de enfrentamento do contexto de alienação, que, devido às circunstâncias, me encontrava exposta. Esse fato possui grande significância por representar eixo orientador com relação às escolhas em todos os sentidos, seja com relação a colegas e amigas nos meios acadêmicos, na convivência com vizinhos, amigos e familiares.

Na atitude de assumir a negritude através do cabelo, de certa forma tornei explícita a regra do jogo, mostrei as cartas e assinalei que certas pautas para mim eram inegociáveis. Nesse contexto ficou explícito que a minha negritude era uma delas. Dessa forma, me libertei de representar papéis impostos para fazer parte de grupos ou adentrar espaços cuja moeda de troca seriam a perda da identidade ou da autoestima. Dessa forma, o meu cabelo representa, para além da minha cor, uma opção e porque não dizer uma afirmação incontestável do meu lugar no universo como pessoa e como mulher. Meu cabelo e eu, uma harmonia só! Dá até gosto de ver como nos entendemos! Eu e meu cabelo! Eu respeito seus caprichos, ele faz meus gostos… Nesse sentido,  é muito presente em mim o prazer de tocar a minha cabeça, a tranquilidade que posso experimentar cada vez que afago meu couro cabeludo, que sinto o perfume e deslizo a mão sobre meus cabelos sentindo com gosto a sua textura, calor, volume …

E na convivência não é sempre assim: o danado tem personalidade própria, gosta de crescer pra cima! Às vezes, cisma de querer ficar pra um lado só! Escolhe de forma criteriosa sua linha de cosméticos! Se me atrevo a usar algo que não lhe cai no agrado… não dá outra! Fica triste, cabisbaixo, mal-humorado! Perde o brilho ameaçando definhar… por conta disso já me fez transitar pelas seções diversas de produtos especializados…analisar as diferentes opções do mercado a partir das diversas promessas, desde as internacionais ao handwerker local! Também por causa  dele, dediquei preciosas horas da minha vida, lendo minúsculas composições de produtos e nem tenho catalogado o montante de pesquisas sobre funções, específicaçoes e afins…e não para por aí… o distinto tem lá suas preferências por cortes e penteados! Amante da liberdade, não é chegado as trancinhas… Inimigo mortal das de fibras, não tolera as embutidas,  como não quer conta com as de dois! Se insisto, se faz de morto… me deixa desfilar crente da beleza e depois se vai junto com adereços e tudo mais…

É de veneta! E vez por outra cria seu próprio modelo ou reinventa! Numa destas, se embola todo! Nessas horas preciso de muita calma e paciência para entender sua demanda e atender sua necessidade…a depender do humor, dou castigo! Deixo uns bons dias sem pentear … pior pra mim! Emburrado e ressentido, revida na pirraça! Mas nada que um bom banho com água perfumada e produtos cheirosos não resolvam… musiquinha … espelho… tempo e fazemos as pazes… ele ainda tenta uma resistência aqui … outra ali … mas acaba  não resistindo à tentação das fragrâncias estrategicamente escolhidas … decerto, é que ao final nós nos entendemos! Ele sensibilizado, dolorido aqui e ali… eu cansada… coração mole… apaixonada…harmonizamos … final feliz!

Meu fiel aliado, tem suas estratégias e no momento propício dá sempre um reforço se a situação é delicada! Nem conto as vezes que, no exercício da auditoria e diante dos olhares embaçados pela lente do racismo, eis que ele me sobe um topete. Ou incisivamente se ergue num dread a balançar bem do dele…, bem ali, no meio da minha cabeça!!! Nessas horas sempre precisei de esforço sobre-humano para não cair na gargalhada ante os olhares de soslaio que lhe lançavam os oficiais interlocutores, em legítimas representações do racismo institucional! Sem contar as vezes que, no meio de uma conversa séria, eu percebia a outra pessoa com “sorrisos imotivados” ou a arrumar de forma compulsiva o próprio cabelo… associado a um certo sorriso… daqueles assim… de cantino de boca… que o povo negro, sabe bem quais são! Nessas ocasiões precisei reunir toda a minha paciência e senso de humor,  para em seguida impostar a voz e em pura  tranquilidade observar: “Você está olhando tanto aqui pra cima! Tem alguma coisa na minha cabeça?!!” . Nem precisa descrição do pandemônio contextual instaurado nessas situações.

Mas quer ver o meu dócil cabelinho literalmente sair do sério? Então basta alguém esboçar de longe a intenção de lhe retocar… se eriça todo! Lança farpas! Dá choques e coisa e tal! Quem já viu gato virado no diabo no começo de uma briga, pode entender bem, o que estou falando! Aí é emergencia mesmo! Para tudo! Mister é lançar mão de toda destreza pra lhe salvar da ameaça iminente! Nestes malabares em sua defesa, por diversas vezes já escapei de torcicolo, TCE… e todo tipo de coisa.

Contemporâneo, aceita de bom grado o meu padrão de beleza e se idêntifica muito bem com meu estilo de vida e opções. Solidário, me aconchega e me realça a beleza, as vontades e as intenções.

E para os que acreditam no ditado popular de que “Santo de casa não faz milagre”, na minha trajetória com relação ao cabelo, a vivência foi bem diferente. Isso porque a minha experiencia de aceitação e identidade com o cabelo contribuíram decisivamente para o empoderamento e melhoria da autoestima  de grande parte das mulheres da minha familia, que a partir daí mudaram de forma radical a estética. Nesse sentido, me gratificou bastante o fato de que minha mãe, irmãs, primas e amigas de infância se permitirem usar o cabelo no formato original, o que acredito possibilitou  um fortalecimento pessoal importante e abriu portas para a autonomia e empoderamento de cada uma delas. Esse fato merece destaque, além de tudo, pelo momento histórico que se deu, pois se trata nada mais nem menos que da década de 1980.

E a minha benfeitora? Um caso a parte! No início ficou consternada. Cada vez que eu lhe fazia uma visita, fazia questão de sinalizar o desagrado com o meu visual e a afirmar que não perdia as esperanças de que eu voltasse atrás em algum momento e passasse a “cuidar novemente do cabelo”  Na sua casa, ainda hoje todas as pessoas “cuidam dos cabelos’, e ainda parece longe a aposentadoria  do ferro de espichar. E ela não desiste. Obstinada, cada vez que me encontra, sempre sussurra como em solilóquio: – Essa menina… podia ter um cabelo tão bonito! Das suas filhas, uma das minhas primas, oscila entre o cabelo étnico e o alisamento. Posso imaginar na ambivalência, o conflito que vivencia, diante das determinações sociais frente aos valores familiares com relação ao padrão de beleza, ao pertencimento e à identidade!

Meu cabelo, minha marca! Importante aliado para a demarcação de espaços na minha trajetória profissional, ao se apresentar como referencial para estimular as minhas colegas negras na busca da  autenticidade a da bem merecida liberdade de expressão e autonomia. A abordagem das temáticas raciais no ambiente de trabalho constitui-se fato relevante, pela razão de que no cenário trabalhista as mulheres negras, além de enfrentarem os inúmeros desafios no sentido de galgar postos de trabalho compativel com a sua qualificação, rotineiramente ainda precisam cumprir como pré-requisito a absorção na íntegra dos valores sociais da ”boa aparência”, onde estão incluídas a destituição da sua identidade e a modelagem com os signos da branquitude, ou seja, o padrão de cabelo comprido e liso, estilo de roupas, padronagem de tecidos, forma de movimentar o corpo no espaço…entre outros.

Essa ocorrência, que pode facilmente ser associada à expressão “morrer na praia” sempre me causou extremo desconforto ao perceber como o racismo se mostra presente, e é bem sagaz nas suas variadas apresentações. Nesse sentido, podemos observar que  mesmo as mulheres mais qualificadas e combativas, não se encontram a salvo do aliciamento do racismo e depois de todos os esforços no sentido de transpor os desafios apresentados para que as pessoas negras acessem os bens de direito, no momento em que poderiam exercer as suas expertises, podem encontrar como atributo classificatório a implícita orientação do padrão de beleza convencionado para a inclusão nos grupos vulgarmente denominados de panelinhas. Onde o racismo nas suas diferentes nuances e diversificadas estratégias de convencimento, se apresenta   como referência de bom senso e expertise e pleno em objetivos subliminares. Um desses objetivos  pode ser o de minar os esforços de autonomia e emancipação, para a  manutenção do domínio e enquadramento das pessoas, e isso se dá de forma convincente e sob a prerrogativa da diferenciação profissional pelo bom gosto, elegancia, nobreza e coisas do gênero.

Nesse contexto, com o meu cabelo me posiciono como possibilidade no aqui e agora enquanto alternativa de contestação quanto ao desempenho profissional e a alienação da identidade, ao tempo em que pela prática represento uma  presença facilitadora e aliada na luta pelo empoderamento das mulheres com relação aos seus corpos e direitos. Os resultados são diversos! No decorrer do processo tenho observado mudanças radicais em companheiras de trabalho. Não por ações de cunho diretivo ou doutrinador. Ao contrário, a experiência demonstra que parte importante do processo se deu através da empatia e identificação com princípios fundamentais de direitos humanos. Curioso se apresenta o fato de que algumas mulheres que tive contato em circunstâncias diversas, posteriormente me abordaram em ocasiões excepcionais para trazer o relato das vivências relacionadas. Nesse sentido, pude compartilhar relatos comoventes, que elencavam fatos perdidos na memória e de importantes significados e  valores pessoais.

Como elencado nessa explanação, nas questões de gênero, o cabelo sempre se consistiu em meu aliado imprescindível para a problematização sobre os ideais de beleza feminina, quanto aos padrões sociais adotados com relação às meninas, adolescentes e mulheres negras. E, de verdade, penso que o cabelo é uma questão pessoal e de identidade e que, como tal, deve ser dado o direito a cada pessoa de ter o livre arbítrio, com relação ao seu uso.

A partir dessa narrativa, posso parecer uma defensora radical do cabelo na sua forma natural, e demonizadora das químicas, ou mudanças de toda ordem, o que não é verdade e de nenhuma forma se aplica à minha forma de pensar. O que defendo, de fato, é o direito de que cada pessoa possa se olhar e se ver na sua plenitude de forma sintônica. Fato que na nossa sociedade, no contexto atual se apresenta quase impossível, em decorrência das circunstâncias de inserção do provo negro no Brasil e das iniquidades e violências que foi e ainda se encontra exposto. Ocasionando a vivência do racismo como uma constante no dia a dia, onde a população negra inundada diariamente pelos conteúdos alienantes oriundos  das classes dominantes, vai sendo continuamente  destituída de referências que lhe permitam a identificação com os próprios signos. E contando, como quase única alternativa para uma suposta inclusão social, com a adoção forcada de padrão de beleza imposto pela branquitude cuja principal premissa centra-se na abolição dos valores étnicos. Diante do exposto, pode-se deduzir dos importantes desafios encontrados pela população negra, no sentido de  se identificar  de maneira prazerosa com as características da sua etnia e, desta forma, também compreender e ressaltar a importância de que ocorra essa identificação para o fortalecimento da sociedade de forma geral.

Para os humanos, o cabelo se constitui um forte referencial de identidade e, como tal, os temas relacionados precisam ser abordados de modo criterioso e qualificado. A depender da forma de abordagem, pode servir para enaltecimento ou desqualificação pessoal, e através dele é possível a afirmação, ou a negação de valores. Exemplo disso é o uso feito em diferentes fases da história por regimes autoritários como forma de dominação e meio de provocar vulnerabilidade nas pessoas. Nesse sentido, uma boa ilustração do uso do cabelo como forma de violação dos direitos individuais e exposição do ser humano, teve lugar na Europa, quando as mulheres que durante a guerra se relacionaram com os soldados inimigos, ao seu final, tiveram os cabelos cortados como forma de punição. No Brasil, tem-se conhecimento do ato de cortar os cabelos dos pacientes psiquiátricos e detentos no momento de admissão nas diferentes instituições. A tentativa de despersonalização pela homogeneização do cabelo pode ser muito bem observada nas instituições disciplinares e embasadas em protótipos padronizados, como é o caso as forças armadas. Prova disso é a ocorrência comum de eventos de violação de direitos envolvendo civis e militares, onde o requisito utilizado para a justificativa de confirmação de delito é a tipificação do cabelo.

É inegável a força do cabelo nas tramas humanas. E essa força nas suas mais variadas formas e diferentes significados, se encontra bem registrada nos diversos tipos de literatura, seja pelas fábulas, mitologia ou lendas. Nesse sentido, pode-se observar   desde um poder descomunal associado a Sansão, a ideia de cabelo como meio e acessibilidade personificado em Rapunzel, até a vivência do encantamento espelhados nas águas de Iara. Para a comunidade negra não tem sido diferente, e ao longo da história, é significativo o papel agregador e o poder desempenhado pelo cabelo crespo nos embates travados pelo movimento social para reivindicação de seus direitos e para o combate às iniquidades impingidas ao povo negro. Esse fato confirma a importância do cabelo como componente importante entre os diferentes aspectos para consideração nos processos de luta para a defesa dos direitos humanos que busquem a autonomia das pessoas e a liberdade de expressão em toda a sua plenitude e essência.